Israel Souza
O bolsonarismo não cabe na democracia
Nosso objetivo no presente texto é refletir criticamente sobre a relação entre bolsonarismo e democracia. Para tanto, partiremos da definição que Norberto Bobbio dá à democracia, considerada “mínima” por ele mesmo.
Israel Souza
Nosso objetivo no presente texto é refletir criticamente sobre a relação entre bolsonarismo e democracia. Para tanto, partiremos da definição que Norberto Bobbio dá à democracia, considerada “mínima” por ele mesmo. Vale frisar, desde já, que nem sequer trabalharemos com todos os traços dessa definição mínima. Quer isto dizer que, nas páginas que seguem, a fim de melhor atingir nossos objetivos e realçar algumas características do objeto aqui em tela, vamos operar com uma definição de democracia ainda mais mínima do que a definição mínima de Bobbio.
Ponderando as dificuldades de se definir a democracia segundo seu conteúdo, o autor opta por defini-la segundo sua forma. Neste sentido, postula que deve-se entender por regime democrático, primariamente, “um conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados”.
Mais à frente, o autor acrescenta que, no que diz “respeito às modalidades de decisão, a regra fundamental da democracia é a regra da maioria, ou seja a regra à base da qual são consideradas decisões coletivas – e, portanto, vinculatórias para todo o grupo – a decisão aprovada ao menos pela maioria daqueles a quem compete tomar a decisão”.
As observações de Bobbio servem perfeitamente para tratar dos processos decisórios e eleitorais. Em um referendo, por exemplo, os cidadãos deliberam sobre a aceitação ou negação de determinada proposta. O que for decidido pela maioria é aprovado. O mesmo se aplica às eleições. Um conjunto de candidatos se apresenta aos eleitores e aqueles que, em votação majoritária, obtiverem a maioria dos votos é eleito.
Definida a democracia, passemos ao bolsonarismo, problematizando em seguida que tipo de relação mantém com ela.
Como sabemos, bolsonarismo é um movimento cuja nomenclatura deriva de sua figura ícone: Bolsonaro. No Exército, este chegou a ser capitão. Entre outras coisas, foi mandado para a reserva por indisciplina e, segundo diversas fontes e documentos, por ter planejado um atentado terrorista.
Parece ironia. No entanto, ainda que defensor da ditadura militar, só ganhou a projeção que tem na democracia e em razão dela. Depois de colocado na reserva, candidatou-se e concorreu a diversos cargos eletivos (vereador, deputado federal e, por fim presidente), obtendo êxito em quase todos os pleitos. A única exceção foi nesta eleição presidencial de 2022, em que perdeu para Lula.
Com a conjuntura favorável que se abre ainda em 2013 (ano em que as ruas são tomadas por manifestações que mostravam a crise de hegemonia do PT), Bolsonaro foi deixando de ser lobo solitário e passou a formar base, difundir sistematicamente seus valores e visões de mundo, conformando, ao cabo de algum tempo, o que hoje conhecemos por bolsonarismo.
A nosso ver, é fora de dúvida que ele formou uns tantos desses bolsonaristas, inculcando neles seus valores; outros, porém, já encontrou formados, cabendo a ele apenas legitimá-los e organizá-los, dando-lhes ordem de comando, de modo claro ou cifrado.
Embora gestado no ventre da democracia, o bolsonarismo só pode vingar e prosperar explodindo-a, mandando pelos ares todo seu corpo. É que, em ambiente democrático, ele se sente tolhido, asfixiado – o que parece outra ironia. Não é por outro motivo que, toda vez que o ordenamento jurídico lhes chama à responsabilidade, eles bradam pelo direito de liberdade (esse será tema de outro texto).
A quem se detiver na superfície, as coisas podem parecer confusas. Entretanto, toda confusão se dissipa quando entendemos que a relação de Bolsonaro e bolsonarismo com a democracia é, sob certo ângulo, pragmática (isto é, tocada pela conveniência), e, por outro, de negação. O que une umbilicalmente ambos os ângulos é que, sempre que conveniente ou necessário, eles reivindicam direitos e liberdades democráticos inclusive de ameaçar, agredir e negar a própria democracia.
O antidemocratismo faz parte de seu DNA. Lembremos que Bolsonaro nunca deixou de defender a ditadura militar (1964-1985) que, segundo ele, cometeu o erro de torturar, mas não matar. Para ele, a ditadura não foi melhor porque não foi suficientemente repressiva e assassina. Lembremos de suas defesas de Ustra, torturador que ele toma por herói.
Por este prisma, faz todo sentido que ele tenha composto um governo militarizado e que bolsonaristas tivessem passado meses acampados em frente de quartéis, implorando golpe militar.
Verdade é que, entre democracia e ditadura, Bolsonaro nunca escondeu seu ódio à primeira e seu amor à segunda. Mesmo devendo todo seu sucesso político à democracia, foi repetidamente enfático ao dizer que, pelo voto, ninguém mudaria nada. Perdemos as contas de quantas vezes ameaçou e ensaiou golpes. Felizmente, não teve forças para realizar seus intentos.
Observando esse histórico, não há motivos para estranharmos o fato de que, sem prova nenhuma, lance suspeição sobre o sistema democrático, antes, durante e depois do pleito. Sobretudo, quando sabemos do que isso implica para sua liberdade e sobrevivência política.
Neste ponto, faço uma concessão ao leitor bolsonarista. Tendo registrado atentamente as palavras de Bobbio, o leitor bolsonarista pode advogar que Bolsonaro não nega a regra da maioria registrada em consulta eleitoral. O que ele questiona, diria o bolsonarista, é que o processo eleitoral sofreu fraudes e, por isso, não representa a vontade da maioria.
Ora, contando com o auxílio de seu partido, da coalizão que encabeçou, com assessoria de técnicos e com militares, Bolsonaro teve todas as oportunidades e condições de comprovar as fraudes por ele alegadas. Em ocasiões várias, disser ter as provas e que, em momento oportuno, iria apresentá-las. Todavia, só fez mesmo foi divulgar informações insustentáveis e sabidamente mentirosas. Nada do que ele apresentou para de pé, como a sofrer de raquitismo.
Não é que o sistema eletrônico de votação seja imune a críticas. Definitivamente, ele não é. O que não se pode, porém, é fazer uso de má-fé para com, mentiras, levantar suspeições de modo criminoso. Assim agindo, Bolsonaro não apenas desrespeita a regra da maioria (“a regra fundamental da democracia”, dirá Bobbio) como coloca a própria democracia em risco.
Ainda sobre o tema, é imperativo registrar o uso da PRF no intuito de impedir que eleitores – principalmente, do Nordeste, região majoritariamente lulista – não pudessem votar. Alertado sobre essa possibilidade, o ministro Alexandre de Moraes determinou que não se fizesse nenhuma operação que pudesse impactar negativamente o direito de voto da população, onde quer que fosse. Esta determinação foi, conscientemente, desrespeitada. E a PRF, no dia da votação, atuou de modo autoritário e seletivo, pois que afetou sobretudo os eleitores de Lula.
Com isso, negou-se a algumas frações da população brasileira um direito basilar da democracia: o direito do voto. O bolsonarismo atentou abertamente contra a soberania popular, procurando forjar, artificial e autoritariamente, uma maioria que fosse favorável a seu líder.
Não obstante, em 12/01/2023, a PF encontrou na casa de Anderson Torres (ex-ministro da Justiça de Bolsonaro) uma minuta que permitiria a Bolsonaro, quando ainda na presidência, declarar estado de defesa no TSE e reverter o resultado das eleições em seu favor. Tal implicaria uma intervenção no TSE, podendo até ensejar a prisão do ministro Alexandre de Moraes.
A minuta baseava-se em alegadas fraudes. Problematizemos o fato com algumas indagações: Se Bolsonaro tinha provas de fraudes, por qual razão não as apresentou e, valendo-se de sua posição de presidente, não usou a minuta? É possível crer que ele, heroica e estoicamente, teria aceitado um golpe dos “comunistas”, um golpe sempre denunciado por ele mesmo e seus asseclas? Se não tinha provas das fraudes, por qual razão fizeram a minuta?
A resposta é simples. Bolsonaro não tem provas de fraudes porque não houve fraudes. Com efeito, fosse em sistema impresso ou eletrônico, Bolsonaro jamais aceitaria perder as eleições. O único resultado por ele aceito e reputado como justo seria aquele que o sagrasse vencedor. Para voltar a Bobbio, podemos dizer que Bolsonaro só respeitaria, de bom grado, as regras do jogo se elas lhe conferissem vitória. Ou seja, ele julga as regras do jogo tendo em vista tão somente o resultado por ele desejado, por mais justas, livres e transparentes que elas sejam!
Por fim, impõe-se dizer que Bolsonaro e bolsonarismo não atacam a democracia apenas de dentro e com esses artifícios “moderados”, por assim escrever. Eles perderam as eleições, mas não aceitaram o resultado. Agora, estão se valendo de artifícios extremistas e violentos. Isso já era latente e usado pontualmente, aqui e acolá. Em razão da conjuntura demasiado desfavorável para eles, o desespero bateu e o terrorismo como arma política passou ao primeiro plano.
No dia da posse de Lula, queimaram carros particulares e ônibus. Tentaram até mesmo entrar na sede da PF. Ao que parece, era só um ensaio. No último dia 08/01/2023, bolsonaristas invadiram Brasília e depredaram os prédios dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Isso não foi por acaso. Nem algo que não se pudesse esperar. Sua retórica e valores sempre foram claramente antidemocráticos e Bolsonaro disse várias vezes que não aceitaria um resultado diferente de sua eleição. De mais a mais, conforme dito linhas acima, ele foi afastado do Exército por ter planejado um ataque terrorista. O que vemos agora, portanto, é apenas o bolsonarismo provando por A + B que foi feito à imagem e semelhança de seu deus.
Poderíamos dedicar, ainda, páginas e mais páginas a outros tantos fatos. Queremos acreditar, entretanto, que esses bastam, por terem demonstrado os traços mais relevantes do que nos propusemos aqui analisar. Mesmo partindo de uma definição demasiado “mínima” de democracia, esses e outros tantos fatos demonstram, sobejamente, que o bolsonarismo é um movimento clara e profundamente antidemocrático.
A relação entre bolsonarismo e democracia é uma relação antitética, isto é, uma relação em que um, necessariamente, nega o outro. Nossa conclusão não poderia ser outra se não essa: diante do conflito estabelecido, ou sobrevive a democracia ou o bolsonarismo. Os dois não dá. Eu fico com a democracia. Espero que o/a leitor/a também.
Israel Souza
Formado em Ciência Política e Mestre em Desenvolvimento Regional. Professor e pesquisador do Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul.
É autor dos seguintes livros: Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédia facínora (EDIFAC, 2018) e A política da antipolítica no Brasil, Vol. I e II (EaC Editor).