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Israel Souza

O Estado, o governo e a questão da violência

Em suas obras Ciência e política: duas vocações e Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva, Max Weber argumentava que “devemos conceber o Estado como uma comunidade humana que, dentro dos limites de determinado território

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Israel Souza

Em suas obras Ciência e política: duas vocações e Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva, Max Weber argumentava que “devemos conceber o Estado como uma comunidade humana que, dentro dos limites de determinado território – a noção de território corresponde a um dos elementos essenciais do Estado – reivindica o uso legítimo da violência física”.

Para o sociólogo alemão, o elemento da violência é tão importante para a caracterização do Estado que afirma: “Se só existissem estruturas sociais de que a violência estivesse ausente, o conceito de Estado teria desaparecido e apenas subsistiria o que, no sentido próprio da palavra, se denomina ‘anarquia’”. E complementa: “todas as associações e pessoas individuais somente se atribui o direito de exercer coação física na medida em que o Estado o permita. Este é considerado a única fonte do ‘direito’ de exercer coação”.

Recapitulando. Um dos elementos mais característicos do Estado é o uso da violência, uso que é circunscrito a um determinado território. Em tal território, quem quer que use de violência – indivíduo ou organização – só pode fazê-lo com a anuência do próprio Estado, sob pena de este se deslegitimar e, no fim, desintegra-se, quedar-se submetido por quem usa de violência contra ele.

Por mais que tratemos o Estado como máquina, nunca é ocioso salientar que ele não se conduz sozinho. Seu quadro de funcionários, cumprindo suas funções ordinárias, dá a ele uma dada direção. É certo. Isso, porém, para o bem e para o mal, não é tudo. Conta ainda a orientação do governo do momento, que pode conduzi-lo numa ou noutra direção. Não fosse assim, de nada adiantariam as eleições, momento em que nós, cidadãos, sufragamos os candidatos que reputamos capazes de dar ao Estado a direção que julgamos mais apropriada.

Muitas foram as expectativas que Bolsonaro suscitou durante as eleições de 2018. Entre outras coisas, sua histórica relação com as forças de segurança (Forças Armadas, polícias etc.) e seu discurso de “bandido bom é bandido morto” davam a impressão de que o Estado brasileiro seria fortalecido no monopólio do uso da violência e que, assim, zelaria por nossa ordem jurídico-constitucional. Quanto a isso, os resultados foram um tanto ambíguos e, no computo geral, preocupantes.

Bolsonaro chegou a parabenizar as polícias pelas operações que resultaram em duas chacinas – uma na comunidade do Jacarezinho e outra na Vila Cruzeiro – cujo resultado foram dezenas de mortos. Os elementos de classe e de cor definem negativamente aquelas pessoas e seus territórios, justificando, aos olhos de uns tantos, a morte tanto dos criminosos quanto dos inocentes. Contra esses sujeitos subalternizados, o Estado afirma não apenas o uso como, via de regra, até o abuso do monopólio da violência física.

Entretanto, o tratamento dispensado a outros sujeitos que representam ameaça muito maior à ordem e à vida foi bem outro. Em verdade, foi um tratamento de proteção, apoio e estímulo. Todos assistimos, entre atônitos e indignados, o que se passa na Reserva Yanomami. Milhares de garimpeiros ilegais invadiram a terra dos Yanomami. Entre os inúmeros crimes por eles cometidos, contamos: poluição das águas dos rios, envenenamento daquela população, assassinato, estupro etc.

Em um vasto território, o crime campeava. Garimpeiros andavam armados, sem nem se intimidar ou mesmo se incomodar com a presença de membros do Exército, sujeitos que encarnam a força/violência do Estado. Em certo sentido, os garimpeiros é que reivindicavam, exitosamente, o monopólio da violência física naquela porção do território brasileiro (o que compreende, além da própria terra, as águas e o espaço aéreo). 

Juridicamente, o território pertence ao Estado brasileiro, mas, factualmente, não. Ao arrepio da lei, o poder soberano ali é outro. A conclusão é incontornável: sob o governo Bolsonaro, na terra Yanomami, o Estado não dispunha nem do monopólio da violência nem do território, elementos essenciais na caracterização do Estado, segundo vimos na formulação de Max Weber.   

Obviamente, a situação não chegou a esse ponto porque os agentes estatais não soubessem do que se passava ou porque não dispunham de força suficiente para combater os criminosos. Nada disso. Por várias vezes, o governo foi alertado e simplesmente resolveu ignorar os pedidos de ajuda. Ciente da gravidade do problema, o vice-presidente Mourão até chegou a dizer que “tirar garimpeiros de terras indígenas não é como tirar camelô da rua”. 

Todavia, se o Estado brasileiro não pode combater criminosos que atentam diretamente contra sua soberania, quem poderá combatê-los? 

Não obstante, diante de tudo o que sabemos do caso, é lícito dizer que o governo Bolsonaro optou por desmoralizar o Estado em benefício próprio, já que mantém uma relação amigável com os garimpeiros. Era tudo uma questão de vontade – de falta de vontade, para sermos mais exatos. É isso o que explica o fato de que, em tão pouco tempo, os garimpeiros estejam deixando aquele território agora, sob o governo Lula. No momento, o Estado volta a reivindicar naquele território, de fato e de direito, o monopólio do uso da violência física. A tendência é a ordem ser reestabelecida.

Cabe notar que a atuação dos acampamentos bolsonaristas ameaçava reproduzir o mesmo problema, porém em escala bem maior, pois que implicando todo o território nacional. Ora, e não foi isso o que vimos da parte dos seguidores de Bolsonaro que planejaram atentados a bomba e invadiram e depredaram os prédios dos Três Poderes?

Sem margem a dúvidas, o que vimos nesses casos foram criminosos ameaçando ou usando de violência contra o próprio Estado, pondo em questão seu monopólio do uso da violência em seu território. 

Impõe-se dizer mais uma vez: a fim de se beneficiar, o governo Bolsonaro pôs em risco o Estado e a ordem constitucional. Entretanto, para os terroristas que concorreram para seus intentos, ele certamente não acha que a máxima “bandido bom é bandido morto” seja aplicada.   

https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/05/4923333-bolsonaro-parabeniza-policia-apos-operacao-que-deixou-28-mortos-no-jacarezinho.html

https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/05/25/bolsonaro-elogia-acao-policial-que-deixou-22-mortos-na-vila-cruzeiro-rj.htm

https://theintercept.com/2022/08/17/governo-bolsonaro-ignorou-21-oficios-com-pedidos-de-ajuda-dos-yanomami/

https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2020/07/15/interna_politica,1167160/mourao-diz-que-tirar-garimpeiros-de-terras-indigenas-nao-e-como-tirar.shtml

Israel Souza

Formado em Ciência Política e Mestre em Desenvolvimento Regional. Professor e pesquisador do Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul.

É autor dos seguintes livros: Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédia facínora (EDIFAC, 2018) e A política da antipolítica no Brasil, Vol. I e II (EaC Editor).

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